Dois episódios de valorização cambial
Folha de S. Paulo - Antônio Barros de Castro e Francisco Eduardo Pires de Souza 29/3/06



Um movimento de apreciação cambial intenso, duradouro e percebido como de difícil reversão tende a acarretar profundas transformações na estrutura das economias. Regridem as atividades dotadas de menor competitividade, enquanto as mais bem dotadas sofrem algum grau de erosão, deixando possivelmente de expandir-se. Em tais condições, ressalvada a hipótese da descoberta de novas atividades excepcionalmente competitivas, a economia como um todo dificilmente cresce.

A sobrevalorização cambial ocorrida por ocasião do Plano Real se manteve até 1998, sendo vista em regra como irreversível. Ao longo daquele período, as importações dispararam, e as exportações tiveram um comportamento pífio: cresceram 2,3% a.a., enquanto o comércio mundial aumentava a uma velocidade bem maior (7% a.a.), ambos medidos em volume. Nesse quadro, representantes da indústria e do agronegócio criticavam severamente a política cambial do governo e anunciavam para breve o desmoronamento de atividades econômicas por eles lideradas.
Contra a expectativa de muitos, contudo, não ocorreram transformações na composição setorial da economia, tampouco a tão temida desindustrialização.
No que toca à indústria, duas parecem ser as razões de fundo pelas quais a valorização pós-real não provocou a regressão prevista. Primeiro, as empresas integrantes do setor manufatureiro, seja pela adoção de novos métodos de organização e gerenciamento, seja pela incorporação de equipamentos e insumos atualizados, encontraram formas de elevar rapidamente sua produtividade.
A segunda razão consiste em que a fulminante vitória sobre a inflação, ocorrida no segundo semestre de 1994, provocou uma forte expansão da demanda doméstica, dando origem a uma onda de otimismo quanto ao tamanho do mercado brasileiro e levando as empresas aqui sediadas -e outras mais que começavam a chegar ao país- a investir para ocupar os novos espaços.
Recordemos, porém, que a expansão do mercado doméstico, combinada com o forte aumento da produtividade na indústria de transformação (8,3% a.a. de 1994 a 99), tornou possível a preservação da indústria, mas não impediu que a economia evoluísse a um ritmo médio muito baixo, pontuado por crises que desaguaram na ruptura de 98/99. A rigor, apenas quando, duas desvalorizações depois, se generalizou a percepção de que o câmbio mais competitivo viera para ficar, as exportações reagiram, passando a crescer em ritmo acelerado. O gráfico nesta página assinala o período (abril/03 a outubro/04) em que a estabilidade cambial a um nível confortável contribuiu, decisivamente, para a vigorosa expansão das exportações.
Saltemos para a atual valorização cambial, patente a partir do último trimestre de 2004. Mais uma vez, os industriais e parte do agronegócio denunciam o nível da taxa de câmbio como destrutivo. Ganha corpo, além disso, a convicção de que a nova situação teria vindo para ficar. Cabe, pois, indagar (prosseguindo na comparação com os anos 90) sobre o comportamento, na atual experiência, da produtividade e das expectativas acerca da evolução do mercado interno.
No tocante às expectativas, há que reconhecer que existe um moderado otimismo quanto ao futuro da economia. Ela tem por base a espetacular redução da vulnerabilidade externa, o quadro internacional benigno e a esperada conquista pelo país, proximamente, do grau de investimento.
Quanto ao aumento da produtividade, há que lembrar que o enorme êxito alcançado nos anos 90 tinha por base o atraso acumulado durante a década perdida -que pôde ser rapidamente superado mediante a adoção de um estoque de soluções amplamente conhecidas. Presentemente, no entanto, com raras exceções, não há saltos (imitativos) a serem dados, visto que já ocorreu um relativo emparelhamento no que se refere a processos produtivos. E isso leva a crer que a resposta das empresas à sobrevalorização cambial não mais tenderá a ser buscada por meio da (rápida) absorção de soluções maduras.
A questão que acaba de ser apontada contém, ao que tudo indica, sérias ameaças. A valorização cambial está levando, como no episódio anterior, a um aumento forte das importações.
Neste episódio, porém, não se trata da rápida absorção de soluções superiores (equipamentos de geração mais avançada, insumos portadores de inovações), trazendo consigo forte aumento de produtividade. Trata-se, fundamentalmente, da troca de fornecedores em benefício de produtos semelhantes, mais baratos e procedentes do exterior.
Logo, não existiria aí um movimento de recuperação do atraso. Mas há, sim, o risco de mudança na estratégia de empresas, que passariam a incluir o Brasil no rol dos países em que a indústria é só finalizadora de produtos. Esse movimento poderia, inclusive, comportar a migração de fábricas para o exterior.
O enfrentamento da séria ameaça aqui caracterizada requer medidas em dois planos. Há que buscar formas com reduzidos efeitos colaterais negativos de corrigir, em alguma medida, a valorização já verificada do real. Num outro plano, haveria que intensificar o apoio ao esforço inovador por parte das empresas, já que estas não mais podem contar com a mera cópia de soluções maduras, como ocorrido nos anos 90. Como, porém, aquela experiência parece ensinar, os ganhos de eficiência verificados ao nível das empresas, ainda quando substanciais, não são capazes de assegurar o crescimento sustentado enquanto persista a distorção cambial.

 



Antônio Barros de Castro, 68, doutor em economia pela Unicamp, professor titular da UFRJ, é diretor de Planejamento do BNDES. Foi presidente do BNDES (1992-1993) e colunista do caderno Dinheiro.
Francisco Eduardo Pires de Souza, 54, doutor em economia pela Unicamp, professor da UFRJ, é assessor da área de Planejamento do BNDES.